quinta-feira, 11 de março de 2010

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sábado, 17 de outubro de 2009

A curiosa vida política dos símbolos


Com Ciência (Revista Eletrônica de Jornalismo Científico)


Yurij Castelfranchi


Todos os físicos estão de olho em Max Planck, na abertura da conferência de Stuttgart. É o ano de 1934. De pé sobre o palco, o descobridor do quantum de ação, grande veterano da ciência alemã, fica calado. Todos se perguntam sobre o que ele, que nunca foi nazista mas que decidiu não abandonar seu país, vai fazer frente à ordem de começar todo cumprimento de “bom dia” e todo discurso oficial com a saudação ao Führer. Planck olha para platéia com embaraço evidente. Levanta seu braço pela metade, para logo deixá-lo cair de novo. Tenta repetir o gesto. Desiste. Enfim, no silêncio espantado de todos, o grande cientista ergue a mão direta no gesto de saudação nazista e de seus lábios saem, quase que de forma hipnótica, as palavras que poucos queriam ouvir: “Heil, Hitler!”. Seus colegas italianos já haviam passado, três anos antes, pela mesma humilhação: Mussolini pediu a todos os professores universitários do país um juramento público de fidelidade ao regime fascista. Mil e duzentos juraram. Só doze, liderados pelo matemático Vito Volterra, fundador do Conselho Nacional de Pesquisa, tiveram a coragem de recusar.

Nos dias de hoje, o mesmo gesto de saudação que para Planck e seus colegas era obrigatório, é proibido e censurado. Em dezembro passado, Paolo Di Canio, jogador de futebol da Lazio, causou um pequeno escândalo repetindo o feito pelo qual, no início do ano, havia sido punido com uma multa de 10 mil euros (cerca de R$ 25 mil). Ergueu seu braço direito em direção ao público durante partida contra o Livorno (cuja torcida é conhecida por ter muitos membros de esquerda) na 15ª rodada do Campeonato Italiano. No jogo seguinte, contra a Juventus, repetiu mais uma vez o gesto ganhando suspensão de uma partida. Em explicação à imprensa, usando óculos de sol pretos (outro ícone dos fãs das ditaduras), o atacante, que tem tatuada no braço a palavra Dux (“líder”: o apelido latino de Mussolini), afirmou que sim, é fascista, “mas não racista”, e que com suas ações não pretende incitar à violência. Esqueceu, porém, que seu gesto na Itália é considerado crime. O juiz da Federação puniu sua atitude alegando que ela “evoca” o regime fascista do ditador Benito Mussolini, “que se caracterizou pela violência contra seus oponentes e a discriminação racial”.

“Evocações”, então, podem ser proibidas ou obrigatórias. É um curioso destino, para “coisas” tão pouco materiais. Símbolos e signos são tão poderosos que ditaduras querem impô-los. São tão perigosos que as democracias, que fundam sua retórica na liberdade de opinião e de expressão, podem precisar regulamentar ou proibir sua exibição. Na maioria dos países democráticos é crime queimar um pedaço de pano que represente a bandeira nacional. Também é proibida a “ofensa à pátria”. Recentemente, uma determinação judicial puniu um ato antes considerado simplesmente um absurdo científico e histórico: negar a realidade do Holocausto. Na França, foi “determinado” por lei que a colonização teve efeitos mais positivos do que negativos. Na Inglaterra, a exibição da suástica em uma festa à fantasia, por um dos filhos do príncipe inglês Charles, gerou indignação pública. De onde vem, então, tamanho poder das coisas simbólicas?
“O antropólogo Edmund Leach dizia que o símbolo transmite informação e é, assim, um ato comunicativo”, comenta Suely Kofes, professora no Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. “Mas os símbolos tanto armazenam significações (como diz também Clifford Geertz), quanto, acrescentemos, relacionam objetos, valores e seres. Os sentidos entretanto são compartilhados e também competitivos”. Assim, por exemplo, comenta Kofes, citando o trabalho dos antropólogos Marshall Sahlins e Leslie White, existe uma grande diferença entre H2O e água benta, apesar de ambas serem a mesma substância química. “Da mesma forma”, continua a antropóloga, “existe uma grande diferença entre a bandeira e um pedaço de pano. Recentemente, fazendo uma leitura dos dilemas na escolha de uma bandeira para Moçambique, mostrei que a disputa para tal escolha pode dramatizar o impasse em condensar (talvez a impossibilidade de condensar) uma auto-representação e marcar uma distinção, em dar uma expressão unificada à multiplicidade e problematizar aquilo ao qual Émile Durkheim, sociólogo, 1858-1917, se referia como a transferência de sentimentos para as coisas, efeito da perspectiva de que a coisa e a idéia de seu símbolo estão unidas estreitamente em nossos espíritos”.

Se assim é, se transferimos sentimentos para as coisas, não surpreende que um gesto, um ato simbólico, possa ter tamanhas conseqüências. Também porque, em muitos casos, o sentimento que transferimos para signos e símbolos está ligado à esfera do sagrado. Assim, em 1995, no Brasil, a cena do pastor Sérgio von Helder, da Igreja Universal do Reino de Deus, chutando uma imagem da Nossa Senhora Aparecida em programa da TV Record, foi considerada escandalosa não só pelos católicos, mas também em ambientes laicos ou mesmo entre alguns evangélicos. Em 2003 e 2004, foi incandescente a polêmica sobre a legitimidade da regulamentação ou proibição do uso do véu islâmico na França, na Alemanha e nas universidades da Turquia. Na Itália, se tornou briga judicial o pedido de professores e de pais de alunos não católicos para tirar a cruz que se encontra nas salas de aula das escolas públicas (o país, por declaração explícita de sua Constituição, é laico e respeita igualmente todas as confissões religiosas). As seqüelas catastróficas da publicação de charges de Maomé por alguns jornais europeus (e republicadas na imprensa egípcia) sejam talvez o exemplo mais recente do impacto do uso de símbolos considerados sagrados ou proibidos.

“Ao relacionar Maomé e bomba”, comenta Suely Kofes, “houve a criação e comunicação de um sentido, um sentido contestável, o que indica a importância política do símbolo. Também vale o inverso: o braço erguido no nazismo, por exemplo, delimita quem o ergue também e quem não o faz. Hoje, aquele símbolo tem uma história concentrada e evoca o que se pretende ter sido derrotado. Voltando às charges, os argumentos (liberdade de expressão, limites da liberdade de expressão, mau gosto, bom gosto) remetem a mundos simbólicos distintos em luta e estão todos presos nas armadilhas da alteridade. Os símbolos, então, imprimem valores a fatos, às coisas ou às pessoas. Também transformam fatos, coisas e pessoas, e comunicam, relacionam, criam diferenças e possibilitam reconhecimentos. Um símbolo, enfim, condensa e expande sentidos: se é assim, por que estranhar sua força política?”.

Um emblema, então, como a bandeira nacional, pode condensar sentidos e significar o que se quer reter politicamente como traço distintivo de um grupo. Sujá-lo, significa a vontade de sujar o grupo: é um ataque, simbólico mas nem por isso menos radical.

Alguns antropólogos, e muitos semiólogos, vêem assim os comportamentos sociais como elementos de um sistema de significações que atua na comunicação social, na sistematização de ideologias, no reconhecimento e oposição entre grupos. Para Edmund Leach, a cultura atua baseada principalmente no “ordenamento simbólico de um mundo artificial”: é por meio da manipulação simbólica que um grupo social dá significado ao mundo a seu redor. Assim, diz o antropólogo, as cores, por exemplo, podem ser associadas a elementos simbólicos. Vermelho pode significar sangue e, então, perigo. Ou também pode significar sangue e, então, vida. Em ambos os casos, uma vez que a materialização do símbolo é efetuada, a evocação do vermelho causa uma reação emocional e comportamental. Umberto Eco escreve: “a cultura pode ser estudada integralmente do ponto de vista semiótico”. E Clifford Geertz acrescenta que o simbólico tem uma existência tão concreta quanto o material, e que cultura é “um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida”. Cultura, para Geertz, é um “sistema simbólico”, uma teia de significados que carregam mecanismos de controle para governar o comportamento. É feita de valores e crenças, de códigos morais e hábitos que são socialmente construídos, transmitidos, aprendidos por meio de signos e símbolos. Ela contribui para regular e padronizar atitudes e emoções. Por isso, a evocação e o uso político de determinados símbolos pode ter conseqüências sociais impactantes ou até dramáticas.
“O dilema”, continua Kofes, “está bem posto por Lewis Carrol no diálogo entre Alice e Humpty Dumpty”:

– Quando uso uma palavra – disse Humpty Dumpty em tom de escarninho – ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique... nem mais nem menos.
– A questão – ponderou Alice – é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes.
– A questão – ‘replicou Humpty Dumpty – é saber quem é que manda. É só isso.

Na continuidade da conversa de ambos, conclui a antropóloga, “nos damos conta de que Carrol está apenas ironizando a certeza do poder sobre a significação. Pois ambos, poder e significação, dificilmente estão fixos na certeza. Submetidos à linguagem e à política, entre as tentativas de estabilidade e a instabilidade, o sagrado dos símbolos não está apenas na religião, está, como lembrou Michel Leiris, na sua capacidade, ou força, de delimitação”.

Leia mais:
SAHLINS, M.: “Two or three things that I know about culture”, The Journal of Royal Anthropological Institute, 5 (3), september, 1999.
KOFES, S.: Comentário, Travessia 4/5, Lisboa, 2004
DURKHEIM, E.: Formas elementares da vida religiosa, capítulo sete.
GEERTZ, C.: A interpretação das culturas, Zahar, editores, RJ, 1978
CARROL, L.: Através do espelho, e o que Alice encontrou lá. Summus editorial, SP.
LEACH, Edmund.: Cultura e comunicação. Lisboa : Edições 70, 1976.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O reencontro entre a Linguística e a Antropologia


Nas Ciências Humanas, muitas são as correntes de pensamento, em diferentes momentos da história, que reivindicam o direito ao uso do termo cognição. Na segunda metade do século XX, a Lingüística viu renascer antigas questões que, de uma maneira ou de outra, procuram estabelecer uma relação entre a estrutura, o uso e o funcionamento da linguagem e o que, de maneira geral, poderíamos chamar de “áreas cognitivas”.
Apenas para exemplificar, poderíamos apontar, com relativa precisão, duas grandes vertentes cujas características apresentamos abaixo:

I) Amparados no pressuposto de que as línguas naturais são adquiridas e faladas “espontaneamente” apenas pelos membros da espécie humana, alguns estudos vão concluir que as propriedades essenciais da linguagem são determinadas pelo tipo específico de estrutura e organização mental dessa espécie. Assim, as propriedades da linguagem estariam diretamente relacionadas às propriedades mentais dos seres que as falam, de tal modo que estudar a linguagem humana seria, essencialmente, estudar determinadas características da mente humana, radicadas em última instância na organização biológica da espécie. Essa perspectiva sobre a linguagem, que recebe, entre outros rótulos, o nome de “naturalista” ou “mentalista”, está presente na Gramática Especulativa dos escolásticos do período medieval, na tradição da Gramática de Port-Royal dos séculos XVII e, a partir da década de 50 do século passado, no modelo de gramática proposto por Noam Chomsky: a Gramática Gerativa.

II) A segunda vertente vai propor que os modelos simbólicos que caracterizam a língua determinam um emparelhamento entre informação lingüística e modelos cognitivos. Isso porque as estruturas utilizadas para articular os sistemas conceptuais se desenvolveriam a partir da experiência. Ou seja, a fundação dos sistemas conceptuais estaria atrelada à percepção física, aos esquemas de movimento corporal, de tal maneira que as características globais da “corporeidade” e da “experiência” definiriam, em grande parte, as características da mente e da gramática. Esse modelo, conhecido como Realismo Experiencialista, é liderado por George Lakoff, Mark Johnson e Eve Sweetser.


O momento posterior ao Realismo Experiencialista é marcado pela consideração do papel de fatores socioculturais na organização, estruturação e funcionamento dos sistemas conceptuais. Desse modo, abre-se um caminho que nos possibilita o diálogo entre as questões construídas pela epistemologia da corporeidade e aquelas provenientes de uma abordagem que poderíamos chamar de Antropologia cognitivo-cultural. Esse diálogo nos permite compreender, por exemplo, que os processos de categorização, que nos possibilitam organizar discursivamente nossa experiência, constituem convenções e adaptações a uma realidade cultural e social. As atividades de construção de sentido, portanto, seriam mediadas pelas redes de conhecimento que se transformam em modelos mentais que são, simultaneamente, modelos culturais dos falantes.